NOLA ARAÚJO
Georgeta Pereira de Araújo, mais conhecida como Nola Araújo,
escritora ,jornalista e memorialista, nasceu em 24 de janeiro de 1911, na
cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano.
Filha de Ricardo Vieira Pereira e Georgeta Motta Pereira,
era neta do jornalista Augusto Ferreira Motta, fundador de O Guarany, o jornal mais antigo da região.
Tinha como irmãos o deputado Augusto Públio Pereira (1907-1060)
e Olga Pereira Mettig (1914-2004).
Colaborou com a extinta Revista Neon do jornalista Sérgio
Mattos, onde publicou artigos sobre sua
infância e juventude em Cachoeira, bem como costumes e tradições de seu
torrão natal.
É autora de quatro romances, dois deles ( Beijo D ´Água e Careta)
tendo como foco a cidade de Cachoeira.
Uma coletânea de artigos de sua autoria, intitulada Crônicas
de um Tempo, foi publicada pelo jornal A
Tarde, de Salvador.
Sua obra, toda ela, se caracteriza pelo cunho
predominantemente memorialista com destaque para as personalidades que mais se
destacaram nas letras e nas artes de Cachoeira. São Felix, Muritiba e cidades
circunvizinhas. Em Beijo D ´Água aborda, sobretudo, aspectos históricos da
região.
Uma de suas crônicas mais conhecidas se refere ao ano de
1987, onde descreve os festejos de Nossa Senhora da Boa
Morte. Ei-lo:
“Folheando um bloco de anotações já em desuso, fui
surpreendida por algo que me tocou em cheio. Como em sentido figurado, uma
lembrança esquecida em lonjuras me chegou com nitidez tão clara, a ferir aquele
agrado plácido de antigamente, no ensejo das festividades de minha cidade, tão
afeita aos costumes ancestrais. Quando em nossa vida de menina, vezes a
curiosidade se aguça, de um jeito, que hábitos e lembranças de um tempo se
guardam no subconsciente e, muito mais tarde, quando, menos se espera, vêm à
tona tão pitorescos quão agradáveis.
Da janela do meu sobrado se descortinava a igreja da matriz
na sua bela arquitetura e, ao mesmo tempo, em lado oposto, se situava a simples
casa de sinhá Maria de Melo. Debruçada em estreito passeio e que justamente
nessa noite, apresentava um ar pouco visto. As pretas da Irmandade de Nossa
Senhora da Boa Morte, numa azáfama de entrar e sair, despertavam aquela noite
do dia 13 de agosto, no arrastar de suas chinelas, no empunhar de tochas
acesas, iluminando desse jeito seus trajes típicos de época. Nossa Senhora
deitada em esquife charola, na sala da casa de sinhá Maria de Melo para ser
conduzida em procissão à igreja da Matriz. De longa data, já se tornara costume
a imagem permanecer, todo o tempo, sob a guarda dessa irmã da Boa Morte, irmã
preta orgulhosa, pimpona e em posses remediadas, como se dizia vulgarmente.
As pretas, quando já na igreja, em silêncio, faziam aquela
vigília tão significativa, quase em penumbra, onde a fé e o respeito imperavam
naquele ambiente religioso. Desfilando contas do rosário, madrugadamente
cochilavam, pendendo a cabeça sobre o peito tão preto, até que a aurora se
avizinhasse, tipicamente friorenta, no ventoso mês de agosto.
No dia seguinte, à tarde, realizava-se a procissão por toda
a cidade. As irmãs daquela comunidade, com as infalíveis tochas às mãos, e o
traje de gala, o qual levava o nome de “beca” por ser confeccionado em saia
preta plissada, e o pano da costa, também preto forrado de vermelho, eram um
luxo só. Como complemento, alvas camisas bordadas até o ombro e pequenas
mangas, torso e chinelas brancas, em cetim, bordadas a seda ou a ouro, de
acordo com as posses. E, para maior realce, usavam correntes com bentinhos,
braceletes vistosos e argolas, em ouro maciço, de rara beleza !
As pretas da procissão, que negociavam no antigo Mercado
Modelo (de segunda a quinta feira), moravam na cidade de Cachoeira. Quando nas
comemorações de sua padroeira, em trajes da irmandade, elas exibiam tão
naturalmente aquele derraame de ouro sobre a pele preta e lustrosa, então
aflorava, de certo, a sua descendência africana que, hoje, creio, ainda
perdura, pois ali ficaram impregnadas as suas raízes.
Finalmente, no dia seguinte, às dez horas, havia a missa
festiva na mesma igreja, seguida de pequena procissão de Nossa Senhora da
Glória, simbolizando a ressurreição de Maria (com outra imagem em pé). Entretanto,
em outras solenidades religiosas, como sejam, casamentos, batizados ou novenas,
as suas indumentárias eram coloridas e as saias bem rodadas sobre anáguas,
engomadas e endurecidas, com o tempero, de goma e limão. Comumente as raparigas
levavam consigo um pequeno banco de madeira, tecido com palhinha, e, quando se
sentavam, as anáguas, empinando, roncavam sobre tapas distribuídos na roda das
saias.
Enquanto isso, após as solenidades religiosas, como arremate
de festa, havia o famoso e indispensável samba. Essa dita festa era realizada
sempre em casa de uma das irmãs, escolhida como provedora e, quase sempre, no
antigo Riacho do Pagão, ruela situada por detrás da rua da Matriz. O samba
realizava-se em uma pagodeira, tão grande, quanto animada, que se estendia por
três dias, com numerosa freqüência, não só pelas entidades da Irmandade, como
daquelas que livremente afluíam, como raparigas e rapazes.
E os casados, ah!, ah!, havia sempre um meio para, às
escondidas, participarem de tão pitoresco costume, muito embora houvesse, vez
em quando, algum comentário aos ouvidos das digníssimas consortes.
Qunto aos comestíveis, perus e leitões eram assados e
farofados, sarapatel e a clássica feijoada, tão condimentada,
sopravam porta afora aquele cheiro capitoso, como se fora um convite sem cartão
nem etiqueta.
Isso tudo se passava num tempo, devagar, em que o luar
clareava a cidade, o Rio Paaraguaçu era enfeitado de barcos e canoas e a ponte
D. Pedro II afigurava-se a uma aprazível passarela”.
Nola Araújo faleceu em Cachoeira, aos 93 anos de idade.
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