domingo, 19 de janeiro de 2014

01- AMORES IMPOSSÍVEIS




PÓRCIA E LEOLINO

Em 1929, Afrânio Peixoto publicou um romance intitulado “Sinhazinha” focalizando a luta travada entre as famílias Castro, Medeiros, Pinheiro e Cabuçu.

O tema central é o idílio da jovem Pórcia de Castro (tia de Castro Alves) e Leolino Pinheiro Cabuçu, rapaz de boa aparência, verdadeiro gentleman, porém casado, boêmio e  galanteador.

Leolino era filho do fazendeiro Inocêncio Pinheiro Cabuçu. Nasceu em 1826, em Brumado, e sua esposa se chamava Prudência Rosa de Santa Edwirges.

O idílio de Pórcia e Leolino foi o tema central do livro “ABC de Castro Alves, de Jorge Amado e de zenas de outros livros. Com o seu estilo despojado e atraente,  Jorge Amado descreve este amor impossível da maneira seguinte:

“O major Silva Castro (avô de Castro Alves) desgostou-se da carreira militar e voltou para o sertão. Aí a família continuou a crescer. Aos filhos que haviam nascido na Bahia juntaram-se outros nascidos nas fazendas. As meninas herdaram a beleza da mãe, D. Ana Viegas, filha de espanhoes, senhora que era apontada pela extraordinária beleza que se reproduzia nas filhas. Em Clélia Brasília, mais ainda em Pórcia, a mais moça. Sílva Castro tornou-se um daqueles senhores feudais do sertão, com fazenda no alto sertão de São Francisco, próximo a Caetité, com fazenda mais junto do mar, em Curralinho, onde a família demorava e onde pelas festas apareciam os rapazes estudantes na capital para os namoros alcovitados pelas tias velhas.

Um desses namoros foi o de Clélia Brasília com Antônio José Alves, estudante de medicina (pais de Castro Alves). O estudante formou-se, viajou, voltou para casar. Nasceu o primeiro filho, José Antônio. O casal mudou-se para a capital.

O Major Silva Castro mandara nesse meio-tempo as filhas solteiras passearem nas fazendas do alto sertão de Caetité. Iriam engordar nos ares de Cajueiros, fazenda das melhores da região, e voltariam depois para as festas de fim de ano, os namoros com os moços da cidade, possíveis casamentos. Elas partiram e lá demoraram algum tempo. Mas veio a seca e as moças tiveram que tomar o caminho de volta, procurando a fazenda Cabaceiras que não fora atingida pelo flagelo e onde o major as esperava. A viagem foi difícil, as estradas batidas pelo solo, as árvores murchas, o gado morrendo, os homens descendo em fuga. Conduzia as moças um irmão do Major Silva Castro, Luís Antônio, conhecedor da região, vinham fazendo a viagem por etapas, as moças incapazes de resistirem a longas travessias sob o sol abrasador. Paravam em fazendas de amigos onde descansavam das fadigas da jornada enquanto Luis Antônio comentava com os fazendeiros os horrores da seca, os prejuízos que estava causando, as possibilidades de chuva. Em cada fazenda que chegavam era uma festa. As moças da casa, os rapazes, todos se alegravam com a inesperada chegada das visitas que era pretexto para festas improvisadas, quebrando a monotonia da vida igual da fazenda. Improvisavam-se bailes, folguedos e jogos, e durante eles as moças esqueciam a seca.

Assim chegaram à fazenda do Capitão Inocêncio Pinheiro Cabuçu, outro dos grandes senhores feudais do sertão, antigo companheiro de armas de Silva Castro, herói também ele das guerras da Independência, combatente dos combates de Cabrito. Maiores foram aí as festas às moças Castros. Eram filhas de um amigo querido do dono da casa e os Cabuçus tudo fizeram, com a característica hospitalidade do sertanejo, para que elas, no burburinho das danças e dos jogos de salão, lavassem dos olhos  e do coração a visão da terra gretada pela seca. Foram dias inesquecíveis para as moças.

Pórcia sentia um estranho frio no corpo e no coração toda vez que seus olhos negros de espanhola cruzavam com os olhos inquietos de Leolino Canguçu, jovem forte como um cavalo selvagem daqueles que ela vira correr nos campos de Caetité, ardiloso e insinuante, sabendo fazer rir aos presentes e ficando subitamente sério como se uma repentina dor cruzasse seu coração. Não podia amá-lo, que uma moça donzela de boa família não podia levantar os olhos para um homem casado por mais belo e sedutor que ele seja. E Leolino há pouco se casara, juntando o nome e os bens dos Canguçus com o nome e os bens de outra das grandes famílias do sertão.

Uma vez, era na varanda. Deitada na rede de tucum, a moça olhava a grande lua cheia que rolava no céu límpido da fazenda. Era uma dessas noites mornas, quando o desejo se espalha sobre os homens, caindo da lua e das estrelas, subindo da terra, das folhas de cheiro forte, dos jasmineiros em flor. Os outros lá dentro brincavam de berlinda. Pórcia estremece na rede, se abre ao luar como uma flor para o orvalho da manhã. Nem sente os passos que se aproximam, nem ouve a respiração precipitada. Mas quando os lábios atingem os seus e os prendem num beijo demorado, ela advinha que aquela só pode ser a boca de Leolino, áspera e veludosa, brutal e cariciosa. Agora, como uma flor orvalhada, deixa cair a cabeça na rede e não encontra palavra para pronunciar. Ele está parado também, olha-a num encantamento, o luar cai sobre a rede.

Quando ele diz que a ama é que Pórcia se recorda da lei do sertão. Lembra-lhe a esposa, os pais, as famílias, tudo o que poderão falar e dizer. Mas ele a beija de novo, agora sente sobre o seu seio que arfa a mão do amado que o acaricia de leve, mais leve que o luar. E combinam a fuga. É a primeira vez que falam como amantes e já ela ouve com entusiasmo o plano que ele, com a imaginação ardente de todo sertanejo, traça para que possam ser para sempre um do outro.

Dias depois, partem todos. Luis Antônio, com as moçase os cabras que acompanham a comitiva, ruma para Curralinho. O Capitão Inocêncio manda garrafa de bom vinho para seu  amigo Major Silva Castro. Beija as meninas na testa, a comitiva parte. Leolino partira na véspera, pretextando negócios em outros pontos. As despedidas são demoradas na varanda da fazenda. A estrada é larga na frente, é o caminho da casa. Vão conversando. Luis Antônio fala da família Canguçu, boa gente, o Capitão Inocêncio um homem de honra, e os filhos uns bons rapazes, apenas Leolino um pouco louco, arrebatado em demasia.

A noite cai rapidamente, não tem luar. A comitiva não quis fazer alto em nenhuma fazenda das redondezas no desejo de chegar quanto antes de amanhecer. Os cavalos vão suados, as narinas abertas como que pressentindo a tempestade. Os cabras olham a noite sem estrelas,  tocam os cavalos. Só Pórcia vai distante daquilo tudo, os olhos perdidos no negror da noite, o pensamento naquele arrebatado rapaz de quem Luis Antônio falava. Será que ele não viria? Viria, sim, tinha prometido, não era homem de faltar à sua palavra. A noite cai sobre a comitiva e com ela Leolino à frente de um grupo de cabras.

A princípio Luis Antônio pensa que um simples acaso fê=lo encontrar Leolino e a seu  grupo. Vai se dirigir para os cumprimentos costumeiros quando os clavinotes apontados, o olhar feroz dos cabras o imobilizam. Leolino toma de Pórcia, coloca-a na garupa do seu cavalo e partem no horror da noite onde a tempestade estala. Voam os cavalos sob a chuva que cai, seu caminho é iluminado pelos raios que rasgam a treva, vão esconder o seu amor num canto longínquo do sertão. Pórcia vai alegre, as mãos na cintura do seu homem que galopa na pressa de tê-la quanto antes.

Chegam afinal. É um rancho pobre no fechado da mata. Os capangas se estendem pelo redor, as armas prontas para o tiroteio, cada um traz um punhal à altura do peito. Leolino a conduz nos braços para a tosca cama  que será  seu ninho de amor. E aí passam a viver, longe de todos, guardados por um pequeno grupo de jagunços, delirantes de amor...
*
Não houve festa na casa dos Castros quando a comitiva chegou sem Pórcia. O Major Silva Castro deixou que as filhas chorassem, que a esposa se desesperasse. Seus olhos não tiveram uma lágrima, sua boca uma palavra. Foi buscar na arca seu velho sabre de campanha, juntou o irmão, os parentes próximos, aceitou a aliança dos Mouras e dos Medrados, famílias que odiavam os Canguçus. E começou a guerra. Durante muito tempo procuraram se acercar da casa onde Leolino e Pórcia escondiam seu amor. Nascera já uma criança, linda criança, criança que era a vida dos pais e que viera completar aquela felicidade.

Leolino e seus cabras resistiam e faziam debandar ao fogo dos clavinotes quanto cabra dos Castros aparecia pelas redondezas. Exupério, um dos irmãos Canguçus, treinava pontaria nos inimigos do irmão que tentavam se aproximar do rancho de Leolino.

Um dia, porém, Leolino e Exeupério, enganados com a calma que reinava nos últimos dias, certos de que os Castros e seus aliados tinham desistido da vingança como impossível, partem para um negócio de pouco demora. Pórcia fica com o filho, guardada pelos cabras e brinca com a criança, ensina-lhe as primeiras palavras querendo fazer uma surpresa a Leolino quando ele chegasse. Mas eis que rompe o tiroteio. Ela chega até a porta. Vê os capangas que resistem ao ataque mas vê também que os inimigos são muitos, seu pai na frente, chamuscado de pólvora, envolvido pelo combate. Toma o filho, tenta partir pelos campos. É tarde, porém. Os homens dos Castros, Mouras e Medeiros invadem a casa, destroem tudo que encontram. Pórcia vê rostos conhecidos, rostos que foram rostos amigos e que agora, após o combate e a vitória, estão endurecidos e a olham como a uma inimiga. Querem levá-la, ela reiste. Seu pai não pronuncia uma única palavra, não a olha sequer. Manda que a levem e ela então, se desprendendo dos braços que a seguram, parte para o quarto de onde  volta com a criança. Apresenta ao Major Silva Castro o seu neto, o filho daquele amor condenado. Seus olhos suplicam piedade, a criança ri. Os Mouras, os Medrados, os cabras se afastam, deixam que o pai, a filha e o neto decidam da questão. Mas é preciso cumprir a lei do sertão e aquele filho filho ilegítimo será sempre um insulto à honra dos Castros. O Major Silva Castro faz um sinal aos cabras, eles tomam a criança (sorria a criança...) e à vista da mãe que enlouquece, retalham-na a facão. A lei está vingada, o filho dquele amor foi cortado da terra.

Pórcia não resiste mais. Perdeu a consciência, se deixa levar pelos homens. Vai na garupa do cavalo de seu pai, seus olhos sem brilho fitam a casa onde ficou o cadáver retalhado do filho.
Morreu louca...
*
Informa Dário Teixeira Cotrim que Leolino Canguçu faleceu alguns anos depois (possivelmente em 1847) na cidade de Grão Mogol, conforme carta do amigo José Ferreira Franco, datada de 16 de setembro de 1847. A milícia de Montes Claros (Minas Gerais) o deteve mas Leolino, sempre destemido, não acatou a ordem de prisão e foi alvejado no telhado de uma casa de mulheres.
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