PÓRCIA E LEOLINO
Em 1929, Afrânio Peixoto publicou um romance intitulado
“Sinhazinha” focalizando a luta travada entre as famílias Castro, Medeiros, Pinheiro e
Cabuçu.
O tema central é o idílio da jovem Pórcia de Castro (tia de
Castro Alves) e Leolino Pinheiro Cabuçu, rapaz de boa aparência,
verdadeiro gentleman, porém casado, boêmio e galanteador.
Leolino era filho do fazendeiro Inocêncio Pinheiro Cabuçu.
Nasceu em 1826, em Brumado, e sua esposa se chamava Prudência Rosa de Santa
Edwirges.
O idílio de Pórcia e Leolino foi o tema central do livro “ABC
de Castro Alves, de Jorge Amado e de zenas de outros livros. Com o seu estilo despojado e atraente, Jorge Amado descreve este amor impossível da
maneira seguinte:
“O major Silva Castro (avô de Castro Alves) desgostou-se da
carreira militar e voltou para o sertão. Aí a família continuou a crescer. Aos
filhos que haviam nascido na Bahia juntaram-se outros nascidos nas fazendas. As
meninas herdaram a beleza da mãe, D. Ana Viegas, filha de espanhoes, senhora
que era apontada pela extraordinária beleza que se reproduzia nas filhas. Em Clélia
Brasília, mais ainda em Pórcia, a mais moça. Sílva Castro tornou-se um daqueles
senhores feudais do sertão, com fazenda no alto sertão de São Francisco,
próximo a Caetité, com fazenda mais junto do mar, em Curralinho, onde a família
demorava e onde pelas festas apareciam os rapazes estudantes na capital para os
namoros alcovitados pelas tias velhas.
Um desses namoros foi o de Clélia Brasília com Antônio José
Alves, estudante de medicina (pais de Castro Alves). O estudante formou-se,
viajou, voltou para casar. Nasceu o primeiro filho, José Antônio. O casal
mudou-se para a capital.
O Major Silva Castro mandara nesse meio-tempo as filhas
solteiras passearem nas fazendas do alto sertão de Caetité. Iriam engordar nos
ares de Cajueiros, fazenda das melhores da região, e voltariam depois para as
festas de fim de ano, os namoros com os moços da cidade, possíveis casamentos.
Elas partiram e lá demoraram algum tempo. Mas veio a seca e as moças tiveram
que tomar o caminho de volta, procurando a fazenda Cabaceiras que não fora
atingida pelo flagelo e onde o major as esperava. A viagem foi difícil, as
estradas batidas pelo solo, as árvores murchas, o gado morrendo, os homens
descendo em fuga. Conduzia as moças um irmão do Major Silva Castro, Luís
Antônio, conhecedor da região, vinham fazendo a viagem por etapas, as moças incapazes
de resistirem a longas travessias sob o sol abrasador. Paravam em fazendas de
amigos onde descansavam das fadigas da jornada enquanto Luis Antônio comentava
com os fazendeiros os horrores da seca, os prejuízos que estava causando, as
possibilidades de chuva. Em cada fazenda que chegavam era uma festa. As moças
da casa, os rapazes, todos se alegravam com a inesperada chegada das visitas
que era pretexto para festas improvisadas, quebrando a monotonia da vida igual
da fazenda. Improvisavam-se bailes, folguedos e jogos, e durante eles as moças
esqueciam a seca.
Assim chegaram à fazenda do Capitão Inocêncio Pinheiro
Cabuçu, outro dos grandes senhores feudais do sertão, antigo companheiro de
armas de Silva Castro, herói também ele das guerras da Independência,
combatente dos combates de Cabrito. Maiores foram aí as festas às moças
Castros. Eram filhas de um amigo querido do dono da casa e os Cabuçus tudo
fizeram, com a característica hospitalidade do sertanejo, para que elas, no
burburinho das danças e dos jogos de salão, lavassem dos olhos e do coração a visão da terra gretada pela
seca. Foram dias inesquecíveis para as moças.
Pórcia sentia um estranho frio no corpo e no coração toda
vez que seus olhos negros de espanhola cruzavam com os olhos inquietos de
Leolino Canguçu, jovem forte como um cavalo selvagem daqueles que ela vira
correr nos campos de Caetité, ardiloso e insinuante, sabendo fazer rir aos
presentes e ficando subitamente sério como se uma repentina dor cruzasse seu
coração. Não podia amá-lo, que uma moça donzela de boa família não podia
levantar os olhos para um homem casado por mais belo e sedutor que ele seja. E
Leolino há pouco se casara, juntando o nome e os bens dos Canguçus com o nome e
os bens de outra das grandes famílias do sertão.
Uma vez, era na varanda. Deitada na rede de tucum, a moça
olhava a grande lua cheia que rolava no céu límpido da fazenda. Era uma dessas
noites mornas, quando o desejo se espalha sobre os homens, caindo da lua e das
estrelas, subindo da terra, das folhas de cheiro forte, dos jasmineiros em
flor. Os outros lá dentro brincavam de berlinda. Pórcia estremece na rede, se
abre ao luar como uma flor para o orvalho da manhã. Nem sente os passos que se
aproximam, nem ouve a respiração precipitada. Mas quando os lábios atingem os
seus e os prendem num beijo demorado, ela advinha que aquela só pode ser a boca
de Leolino, áspera e veludosa, brutal e cariciosa. Agora, como uma flor
orvalhada, deixa cair a cabeça na rede e não encontra palavra para pronunciar.
Ele está parado também, olha-a num encantamento, o luar cai sobre a rede.
Quando ele diz que a ama é que Pórcia se recorda da lei do
sertão. Lembra-lhe a esposa, os pais, as famílias, tudo o que poderão falar e
dizer. Mas ele a beija de novo, agora sente sobre o seu seio que arfa a mão do
amado que o acaricia de leve, mais leve que o luar. E combinam a fuga. É a
primeira vez que falam como amantes e já ela ouve com entusiasmo o plano que
ele, com a imaginação ardente de todo sertanejo, traça para que possam ser para
sempre um do outro.
Dias depois, partem todos. Luis Antônio, com as moçase os
cabras que acompanham a comitiva, ruma para Curralinho. O Capitão Inocêncio manda garrafa de bom vinho para seu amigo Major Silva Castro. Beija as meninas na
testa, a comitiva parte. Leolino partira na véspera, pretextando negócios em
outros pontos. As despedidas são demoradas na varanda da fazenda. A estrada é
larga na frente, é o caminho da casa. Vão conversando. Luis Antônio fala da família
Canguçu, boa gente, o Capitão Inocêncio um homem de honra, e os filhos uns bons
rapazes, apenas Leolino um pouco louco, arrebatado em demasia.
A noite cai rapidamente, não tem luar. A comitiva não quis
fazer alto em nenhuma fazenda das redondezas no desejo de chegar quanto antes
de amanhecer. Os cavalos vão suados, as narinas abertas como que pressentindo a
tempestade. Os cabras olham a noite sem estrelas, tocam os cavalos. Só Pórcia vai distante
daquilo tudo, os olhos perdidos no negror da noite, o pensamento naquele
arrebatado rapaz de quem Luis Antônio falava. Será que ele não viria? Viria,
sim, tinha prometido, não era homem de faltar à sua palavra. A noite cai sobre
a comitiva e com ela Leolino à frente de um grupo de cabras.
A princípio Luis Antônio pensa que um simples acaso fê=lo
encontrar Leolino e a seu grupo. Vai se
dirigir para os cumprimentos costumeiros quando os clavinotes apontados, o
olhar feroz dos cabras o imobilizam. Leolino toma de Pórcia, coloca-a na garupa
do seu cavalo e partem no horror da noite onde a tempestade estala. Voam os
cavalos sob a chuva que cai, seu caminho é iluminado pelos raios que rasgam a
treva, vão esconder o seu amor num canto longínquo do sertão. Pórcia vai
alegre, as mãos na cintura do seu homem que galopa na pressa de tê-la quanto
antes.
Chegam afinal. É um rancho pobre no fechado da mata. Os
capangas se estendem pelo redor, as armas prontas para o tiroteio, cada um traz
um punhal à altura do peito. Leolino a conduz nos braços para a tosca cama que será
seu ninho de amor. E aí passam a viver, longe de todos, guardados por um
pequeno grupo de jagunços, delirantes de amor...
*
Não houve festa na casa dos Castros quando a comitiva chegou
sem Pórcia. O Major Silva Castro deixou que as filhas chorassem, que a esposa
se desesperasse. Seus olhos não tiveram uma lágrima, sua boca uma palavra. Foi
buscar na arca seu velho sabre de campanha, juntou o irmão, os parentes
próximos, aceitou a aliança dos Mouras e dos Medrados, famílias que odiavam os
Canguçus. E começou a guerra. Durante muito tempo procuraram se acercar da casa
onde Leolino e Pórcia escondiam seu amor. Nascera já uma criança, linda
criança, criança que era a vida dos pais e que viera completar aquela
felicidade.
Leolino e seus cabras resistiam e faziam debandar ao fogo
dos clavinotes quanto cabra dos Castros aparecia pelas redondezas. Exupério, um
dos irmãos Canguçus, treinava pontaria nos inimigos do irmão que tentavam se
aproximar do rancho de Leolino.
Um dia, porém, Leolino e Exeupério, enganados com a calma
que reinava nos últimos dias, certos de que os Castros e seus aliados tinham
desistido da vingança como impossível, partem para um negócio de pouco demora.
Pórcia fica com o filho, guardada pelos cabras e brinca com a criança,
ensina-lhe as primeiras palavras querendo fazer uma surpresa a Leolino quando
ele chegasse. Mas eis que rompe o tiroteio. Ela chega até a porta. Vê os
capangas que resistem ao ataque mas vê também que os inimigos são muitos, seu
pai na frente, chamuscado de pólvora, envolvido pelo combate. Toma o filho,
tenta partir pelos campos. É tarde, porém. Os homens dos Castros, Mouras e
Medeiros invadem a casa, destroem tudo que encontram. Pórcia vê rostos
conhecidos, rostos que foram rostos amigos e que agora, após o combate e a
vitória, estão endurecidos e a olham como a uma inimiga. Querem levá-la, ela
reiste. Seu pai não pronuncia uma única palavra, não a olha sequer. Manda que a
levem e ela então, se desprendendo dos braços que a seguram, parte para o
quarto de onde volta com a criança.
Apresenta ao Major Silva Castro o seu neto, o filho daquele amor condenado. Seus
olhos suplicam piedade, a criança ri. Os Mouras, os Medrados, os cabras se
afastam, deixam que o pai, a filha e o neto decidam da questão. Mas é preciso
cumprir a lei do sertão e aquele filho filho ilegítimo será sempre um insulto à
honra dos Castros. O Major Silva Castro faz um sinal aos cabras, eles tomam a
criança (sorria a criança...) e à vista da mãe que enlouquece, retalham-na a
facão. A lei está vingada, o filho dquele amor foi cortado da terra.
Pórcia não resiste mais. Perdeu a consciência, se deixa
levar pelos homens. Vai na garupa do cavalo de seu pai, seus olhos sem brilho
fitam a casa onde ficou o cadáver retalhado do filho.
Morreu louca...
*
Informa Dário Teixeira Cotrim que Leolino Canguçu faleceu alguns anos depois (possivelmente em 1847) na cidade de Grão Mogol, conforme
carta do amigo José Ferreira Franco, datada de 16 de setembro de 1847. A
milícia de Montes Claros (Minas Gerais) o deteve mas Leolino, sempre destemido,
não acatou a ordem de prisão e foi alvejado no telhado de uma casa de mulheres.
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